6 Recomendações Concretas para a Estratégia Nacional de IA
O que Portugal pode fazer hoje para não ficar na periferia da próxima revolução tecnológica.
Como parte da equipa da Rows, tenho acompanhado de perto a transformação radical impulsionada pela Inteligência Artificial generativa nos últimos três anos. Desde o lançamento do ChatGPT em fins de 2022 – que atingiu 100 milhões de utilizadores em meros dois meses, tornando-se a aplicação de mais rápido crescimento de sempre – a IA saiu dos laboratórios de investigação para o centro das atenções públicas e governamentais.
Entrámos numa nova corrida global à tecnologia: só em 2024 o investimento privado mundial em IA atingiu 252 mil milhões de dólares, 13 vezes mais do que há uma década, catalisando avanços e preocupações em igual medida.
Todas as semanas lemos notícias de startups tecnológicas de inteligência artificial de todo o mundo como o Cursor, o Replit (EUA) ou o Lovable (UE) a baterem novos recordes de receita anteriormente inimagináveis
Neste contexto, Portugal não se pode dar ao luxo de ficar para trás. Este artigo é uma seleção de algumas recomendações concretas para que Portugal avance já na área da Inteligência Artificial, convertendo o entusiasmo em execução e impacto.
Pessoas
O primeiro pilar – Pessoas – foca-se no talento, formação e qualificação. A realidade hoje é clara: falta mão de obra especializada em IA.
Em Portugal, a área de Inteligência Artificial (e Tecnologia de Informação) é já a que regista maior carência de talento no setor tecnológico, com a procura por especialistas a crescer mais de 20% ao ano até 2026. Esta escassez de profissionais qualificados é apontada como a principal barreira interna à adoção de IA nas empresas portuguesas. Ou seja, mesmo as organizações dispostas a inovar enfrentam dificuldade em encontrar engenheiros de machine learning, cientistas de dados ou especialistas em IA suficiente para os seus projetos. Paralelamente, muitas funções existentes correm o risco de se tornarem obsoletas sem requalificação: estudos estimam que cerca de 30% dos empregos em Portugal podem ser profundamente afetados pela automação e IA nas próximas décadas, ao mesmo tempo que novas profissões emergirão. Mesmo que este número acabe por ser diferente da realidade, a verdade é que muitos trabalhos vão ser altamente influenciados por IA.
O desafio de pessoas é duplo: formar novos especialistas e reciclar a força de trabalho atual para a era da IA.
As oportunidades, no entanto, são proporcionais ao desafio. Países desenvolvidos estão a investir em grande escala em capacitação em IA, tanto para atrair talentos globais quanto para educar a população em geral. A Finlândia, por exemplo, lançou um curso online gratuito – Elements of AI – com o objetivo de formar 1% da sua população nos conceitos básicos de IA, iniciativa que já introduziu mais de um milhão de pessoas ao tema. Nos Emirados Árabes Unidos, foi fundada de raiz a Universidade Mohamed bin Zayed de Inteligência Artificial (MBZUAI), a primeira do mundo dedicada integralmente à IA, oferecendo cursos de mestrado e doutoramento com bolsas integrais para atrair talentos globais. Os Estados Unidos, por seu turno, têm fomentado parcerias entre governo, indústria e academia para formar especialistas: criaram dezenas de centros nacionais de investigação em IA em universidades e empresas e lançaram programas de vistos (“Tech Visa”) para captar engenheiros estrangeiros de topo.
Para Portugal, há medidas práticas e imediatas que podem ser implementadas neste domínio de Pessoas:
Aumentar significativamente as vagas em formação STEM e IA: É imperativo expandir o número de vagas em cursos universitários de ciência de dados, informática/eletrónica, robótica, ciências da computação e inteligência artificial, bem como criar programas específicos de mestrado/doutoramento em IA (e apoiar excelentes exemplos como as escolas de programação 42 Porto e 42 Lisboa).
Universidades de topo europeias já o fazem – a França, por exemplo, lançou planos para triplicar os graduados anuais em IA ao financiar novos programas académicos e centros de investigação especializados (o esforço francês atraiu inclusive laboratórios de IA de empresas como a Meta/Facebook para Paris). IA está a baixar drasticamente a barreira para criar produtos digitais, e a aumentar o número de pessoas capazes de os criar vai continuar a ser o bottleneck para a criação de empresas inovadoras. Não faltam exemplos de excelentes empresas tecnológicas portuguesas (Sword Health, OutSystems) e grandes empresas internacionais (Cloudflare, Amazon AWS, BMW) que empregam centenas de trabalhadores de IT em Portugal, e que pagam salários altos e muitos impostos. Quanto mais pessoas formadas nessas áreas tivermos, maiores serão as chances de criarmos ou ajudarmos a estabelecer grandes empresas no país.
Refazer o currículo da Disciplina de Aplicações Informáticas: Em vez de grandes transformações nas escolas, numa primeira fase focava-me exclusivamente em refazer o programa da Disciplina de Aplicações Informáticas A/B (idealmente tornando-a uma disciplina obrigatória), e transformá-la num conjunto de projetos práticos que os ensine aos alunos como fazer aplicações web/móveis (recorrendo a produtos como o Cursor ou Lovable), análise de dados (e.g.Rows), geração/manipulação de imagens (e.g. ChatGPT, Midjourney) e automações de workflows (e.g. n8n ou Zapier). Vivemos num mundo em que qualquer pessoa consegue criar soluções digitais a partir do seu telemóvel. Não temos desculpa para não capacitar os nossos jovens nestas capacidades emergentes.
Empresas
O segundo pilar da framework são as Empresas – englobando tanto as grandes empresas tecnológicas e investidores que Portugal quer atrair, quanto o ecossistema local de startups e corporações tradicionais que precisam adotar IA. O objetivo é duplo: atrair para Portugal players globais de IA (laboratórios de I&D, centros de engenharia, investimentos estrangeiros) e estimular as empresas nacionais a incorporarem rapidamente a IA nos seus produtos, processos e modelos de negócio:
Comecemos pelo cenário internacional. Os países que estão na dianteira de IA criaram verdadeiros hubs empresariais e de inovação, combinando talento, capital e políticas pró-ativas para seduzir os líderes deste novo setor. O caso da Irlanda é exemplar: desenvolveu uma forte reputação como polo tecnológico e, em 2024, conseguiu atrair a Anthropic – uma das principais startups mundiais de IA – a abrir o seu primeiro escritório europeu em Dublin. Já o Reino Unido, por sua vez, beneficiou de ser ágil na regulação e incentivo à inovação: a OpenAI (criadora do ChatGPT) anunciou em 2023 a abertura do seu primeiro escritório internacional em Londres, elogiando o “rico pool de talento” britânico e um enquadramento regulatório “pró-inovação” oferecido pelo governo do Reino Unido. Outros exemplos incluem a Meta/Facebook AI (que instalou um grande laboratório de pesquisa em Paris anos atrás) ou a DeepMind (fundada em Londres e hoje parte da Google, mantendo lá centenas de investigadores). Fora da Europa, vemos o aceleramento: a OpenAI formou o projeto “Stargate” – um consórcio com SoftBank, Oracle, NVIDIA e outros – que planeia investir 500 mil milhões de dólares na construção de novos centros de dados e supercomputadores de IA nos EUA, uma iniciativa apadrinhada ao mais alto nível governamental para “assegurar a liderança americana em IA”. E mesmo países menores entram no jogo: a UAE (Emirados Árabes) firmou este ano uma parceria com a OpenAI para lançar o Stargate UAE, prevendo uma capacidade de computação de 1 GW em Abu Dhabi até 2026, ao mesmo tempo que empresas chinesas como a Baidu são convidadas a pilotar serviços de táxis autónomos no Dubai (50 táxis sem condutor começam a operar em 2025, com lançamento comercial em 2026). Em resumo, a tendência global é clara – há uma corrida por parte de cidades e países para captar projetos de IA, oferecendo incentivos, infraestruturas e acesso a mercados.
Portugal tem de se posicionar neste xadrez competitivo para não ficar periférico na nova economia da IA. Quais ações concretas podemos tomar no eixo Empresas?
Criar um programa agressivo de atração de centros de IA de multinacionais: Assim como Irlanda ou UK, Portugal deve abordar diretamente empresas líderes (OpenAI, Google DeepMind, Anthropic, Microsoft, NVIDIA, etc.) e fazer uma ‘operação de charme’ com condições vantajosas para instalarem polos de I&D ou labs cá. Isso inclui incentivos fiscais por X anos, apoio em recrutamento de talentos internacionais (facilitando vistos e relocation), ligação a universidades locais e co-financiamento de projetos de investigação em IA de interesse público. A narrativa tem de ser: Portugal pode ser uma porta de entrada para a Europa, tem recursos altamente qualificados com provas dadas na criação de empresas tecnológicas lideres mundiais (e.g. Outsystems, Feedzai, Sword Health, Talkdesk, entre outras) e energia renovável abundante para alimentar infraestruturas, incluindo projetos como o SINES DC.
Organizar a maior conferência de IA do mundo: Replicando o sucesso da parceria com a Web Summit, aproveitava esse momentum para convencer alguma das maiores empresas de AI do mundo a organizar uma conferência anual de IA em Portugal. Como já vimos no passado, ninguém recusa uma boa desculpa para vir passar uns dias ao nosso país.
Ser o primeiro país da Europa com circulação de veículos 100% autónomos na estrada: A condução autónoma é provavelmente a área de IA que tem passado mais despercebida. A Waymo - empresa de veículos autónomos detida pela Alphabet - já faz mais de 250,000 viagens por semana (!) de forma 100% autónoma nas cidades de São Francisco, Phoenix, Los Angeles e Austin. Para trazermos esta tecnologia (inevitável) para a Europa precisamos de um enquadramento legal favorável e simples, e uma parceria com uma das empresas lidera nesta área (quer seja a americana Waymo ou empresas europeias como a Wayve). Mais uma vez, temos a oportunidade de liderar esta corrida e beneficiar dos efeitos secundários de ter a primeira AV City (autonomous vehicle) na Europa. Adicionalmente, poderíamos estender estes hubs à mobilidade aérea autónoma (drones) em casos como entrega de encomendas em áreas de difícil acesso (serras, ilhas) com projetos piloto coordenados pela ANAC, ou barcos autónomos para travessias fluviais (imaginemos no Douro ou Tejo, pequenas embarcações inteligentes), ou outras aplicações de robótica como limpeza de matas. O crucial é que Portugal se disponibilize como playground tecnológico seguro e controlado – algo que países líderes já fazem (a China tem mais de 20 cidades a permitir testes de nível 4 nas ruas; o Japão planeia ter veículos de nível 4 em todo o país em 2027). Não podemos, portanto, esperar pela “maturidade total” da tecnologia; devemos trazê-la para cá e moldá-la.
Energia e Infraestrutura
Por fim, o pilar Recursos refere-se às condições materiais e de suporte que permitem que a IA floresça: infraestrutura computacional (data centers, supercomputadores), acesso a dados, e recursos energéticos e financeiros necessários para sustentar projetos de IA de larga escala. Costuma-se dizer que “dados são o novo petróleo” e que o poder computacional é a chave do avanço em IA – basta ver que os modelos mais avançados (GPT-4, por exemplo) exigem milhares de GPUs e enormes quantidades de energia para treinar. Assim, um país preparado para a era da IA precisa garantir capacidade computacional e energética, políticas inteligentes de dados abertos e proteção de informação, e financiamento para viabilizar tudo isto.
A nível internacional, a corrida está ao rubro. Nos EUA, o Projeto Stargate da OpenAI planeia mega data centers, comparáveis ao “New Deal”, enquanto estados disputam os investimentos. A China aposta em supercomputadores como o de Xangai (3 exaFLOPs), e a Europa responde com o LUMI na Finlândia, altamente eficiente e 100% verde. No Reino Unido, a NVIDIA lançou o Cambridge-1 para pesquisas em saúde. Países nórdicos tornaram-se polos de data centers graças ao clima frio e energia renovável e as grandes empresas como a Microsoft e a Google investem em infraestruturas neutras em carbono, incluindo o financiamento de centrais nucleares. Quem tiver mais poder computacional atrai inovação – mas o custo energético é cada vez mais central nesta equação.
Portugal, dentro dos seus limites, tem alguns trunfos neste pilar de Recursos, mas precisa de os amplificar com visão estratégica:
Investir em consórcios de data centers com energia verde: Portugal possui uma das maiores percentagens de energia renovável na eletricidade da Europa (em 2023 cerca de 70% da eletricidade era de fonte renovável). Isso é uma enorme vantagem comparativa para alojar infraestrutura de computação intensiva de forma sustentável. Uma iniciativa emblemática já em curso é o campus de data centers de Sines (Start Campus), que está a instalar 1,2 GW de capacidade de TI, projetando ser o maior campus de dados da Europa, 100% alimentado por renováveis e com arrefecimento por água do mar. Este projeto, de 8,5 mil milhões de € de investimento, posiciona Sines como um “hub” digital atlântico, aproveitando também cabos submarinos ali ligados. O país deve apoiar e replicar este modelo: criar consórcios público-privados, como parte da ofensiva da ‘operação de charme’ para as empresas de AI, e desenvolver mais centros de dados e computação de alto desempenho em regiões com disponibilidade de solar/eólica (por ex., no Alentejo interior com solar abundante, ou no norte com eólica), incluindo eventualmente mini-centros modulares perto de parques eólicos dedicados a computação de IA.
Conclusão
Estamos diante de uma oportunidade única geracional. Para Portugal, um país pequeno, o pior cenário seria a inação – assistir de fora a esta transformação, tornando-se meramente um importador de tecnologia e perdendo talentos para o exterior. O melhor cenário, por sua vez, está ao nosso alcance se agirmos de forma estratégica nos três eixos abordados:
Pessoas: Formar e atrair talento em IA numa escala nunca antes tentada, para termos (parte dos) cérebros e mãos que constroem o futuro digital.
Empresas: Criar um ambiente onde tanto multinacionais de IA queiram investir cá, como as nossas empresas tradicionais e startups possam inovar e escalar globalmente com IA.
Energia: Alavancar as vantagens do país (energia limpa, localização, fundos da UE) para montar a infraestrutura robusta que sustenta o ecossistema de IA.
Em 1995, a Netscape entrou em bolsa. Para muitos, foi o momento simbólico que deu início à era da Internet — um ponto de inflexão que poucos países souberam antecipar. Quem apostou cedo, como os EUA, a Estónia ou a Coreia do Sul, colheu os frutos de décadas de inovação, crescimento económico e influência global.
Estamos agora num momento equivalente com a Inteligência Artificial. A diferença é que, desta vez, sabemos o que está em jogo. Portugal não pode ser apenas um utilizador tardio de tecnologia — pode e deve ser um construtor ativo desta nova era.
Temos talento, temos energia limpa, temos vontade (?). Agora precisamos de agir. Como em 1995, a história está a começar a ser escrita. A única pergunta é: vamos estar no centro ou na margem?
Vamos a isto. Eu, e a Rows, estamos disponíveis para ajudar.
(um obrigado especial a toda a gente que ajudou a rever o artigo e contribuir com ideias.)